VISITA DO ANJO DA GUARDA
Acadêmico José Nário
Acordei
no meio da noite. Alguém sussurrava em meu ouvido. Era uma voz
suave, mas de tonalidade masculina. Imediatamente eu concluí que não
poderia ser minha esposa, até porque ela ressonava tranquilamente no
travesseiro ao lado.
Pisquei
várias vezes na escuridão do quarto para ter certeza de que estava
acordado. E rapidamente concluí que estava bem desperto. Olhei em
volta, mas nada via devido à escuridão. Escutei apenas um farfalhar
de asas, como se um grande pássaro estivesse ali no quarto,
escondido na escuridão.
Dúvidas
permeavam meus pensamentos quando a voz falou novamente, bem próxima
de mim. Chegou bem perto e disse:
─
Não fala nada, Zé. Venha até a sala que eu explico porque estou
aqui.
Fosse
o que fosse aquela voz, seu portador sabia o meu nome. Não sei se
fiquei mais apavorado ou mais tranquilo. Ainda tinha esperança de
que fosse só mais um sonho dos muitos que povoam minhas noites. Em
seguida ouvi novamente o farfalhar de asas e senti um arrepio
percorrer meu corpo.
Mesmo
sem ter certeza se era ou não um sonho, resolvi levantar
cuidadosamente para não acordar minha esposa e fazer o que mandava a
voz misteriosa. Ouvi claramente quando a porta do quarto se abriu e
uma tênue luminosidade inundou o quarto. Mesmo assim, não consegui
discernir o que era aquele vulto.
Saí
da cama e passei pela porta, puxando-a atrás de mim. Fui em direção
à sala, onde havia uma certa luminosidade vinda da rua, atravessando
a grande vidraça da frente da casa. Um vulto escuro estava parado
bem no meio da sala. Quando me aproximei, ainda temeroso, a voz falou
novamente:
─
Oi, Zé. Desculpe te acordar no meio da noite, mas meu tempo anda
meio escasso e só pude vir agora.
Eu
continuava sem entender nada daquilo. Aquele vulto, visto na
penumbra, parecia um grande pássaro. Mesmo na pouca luz eu consegui
ver que era, na verdade, um homem com asas. Grandes asas, que se
moviam de vez em quando, como fazem os pássaros quando estão
pousados.
Ainda
muito assustado e sob o efeito do sono interrompido, consegui
articular a pergunta que chacoalhava em meu cérebro desde que fui
acordado:
─
Quem é você e o que está fazendo aqui?
Ele
balançou a cabeça, concordando e disse:
─
Ah, claro, desculpe! Preciso me apresentar. Meu nome é Asariel e sou
seu anjo da guarda...
Se
alguém pudesse me ver naquele momento, veria que eu estava com a
boca aberta e tentando articular algumas palavras que não saíam.
Depois de forçar um pouco, elas saíram meio gaguejadas:
─
O quê... quê... que ocê disse?
─
Eu disse que sou seu anjo da guarda e me chamo Asariel...
É
claro que a primeira coisa que me veio à mente foi que havia chegado
a hora da minha partida para o além e o anjo viera me buscar. Mesmo
torcendo para que não fosse a minha hora, achei bom que fosse um
anjo a me buscar. Isso me dava uma pequena esperança de ir para o
céu.
Meus
pensamentos foram interrompidos por uma gargalhada do anjo. Ele até
se dobrou de tanto rir. Quando parou, olhou novamente pra mim e
falou:
─
Vou explicar tudo. Não precisa ficar assustado assim! Não estou
para te buscar, ainda... É que nos últimos dias você andou fazendo
apelos a vários santos para lhe ajudarem. Parece que você está
meio enrolado com uma crônica que prometeu aos seus companheiro da
Academia e não encontra a inspiração para escrever, não é isso?
Já
um pouco mais tranquilo, respondi:
─
É isso mesmo. Na última reunião da Academia, nossa presidente,
Dona Maria Ignês, fez uma proposta que todos nós aceitamos. Para
nos incentivar a escrever, ela propôs que a cada reunião alguém
apresentasse uma pequena obra escrita, lendo-a para os demais. E
nessa primeira reunião ela mesma apresentou uma linda e inspirada
crônica que falava do seu rico passado, da sua juventude, seus laços
familiares e das belas lembranças advindas desses fatos. Eu me
entusiasmei e prometi que seria o próximo a apresentar um escrito.
Mas, com o passar dos dias e a proximidade da nova reunião dos
membros da academia, eu percebi que a inspiração não vinha.
Nessa
hora, o anjo tossiu e retomou a palavra, bastante irritado:
─
Aí você desandou a pedir para os Santos ajudarem. Começou por São
José, que tem o mesmo nome que o seu. Depois apelou para São
Cristóvão, que já o ajudou muito em alguns acidentes de
automóveis. Falou também com Nossa Senhora Aparecida, só porque
quando criança você visitou seu santuário. Achou que já tinha
alguma intimidade, né? Enfim, pediu para todos os santos conhecidos
e terminou com Santo Expedito, o santo das causas impossíveis, não
foi isso mesmo?
Eu
fiquei meio constrangido, mas admiti:
─
É, fazer o quê. Eu prometi...
O
anjo, mais calmo, continuou:
─
Pois é. Essa história de pedir ajuda pra tudo quanto é santo, só
deixa claro uma coisa: você não tem é fé em nenhum deles. Não
confia em ninguém lá de cima. Se tivesse, não pediria para todos.
Mas, mesmo assim, eles resolveram te dar uma chancezinha. São
Machado resolveu te ajudar e me mandou aqui.
Eu
fiquei meio surpreso com o nome do santo e perguntei:
─
São Machado, quem é esse? Nunca ouvi falar...
O
anjo levantou a cabeça, olhando pra cima e resmungou:
─
Deus Meu, quanta ignorância! Como não sabe quem é São Machado?
Machado de Assis! São Joaquim Maria Machado de Assis. Era chamado de
bruxo do Cosme Velho, mas isso era intriga da oposição. Fundou a
Academia Brasileira de Letras e é considerado um dos maiores
escritores em língua portuguesa... Um Santo homem, sem dúvidas!
Eu
o interrompi, antes que se entusiasmasse. Falei bem alto:
─
Eu sei muito bem quem é Machado de Assis!
Ele
fez um gesto com os braços, como se fosse um regente de orquestra,
enquanto dizia:
─
Então, taí! São Machado mandou e eu vim te ajudar. Agora é hora
de ir embora porque ainda vou trabalhar o restante da noite. Como já
disse, ando meio sem tempo de ficar “proseando” por aí. Tchau!
Ele
se voltou e seguiu em direção à porta da frente. E eu fiquei ali
pensando que continuava sem entender qual a ajuda que ele havia me
dado. Corri atrás dele e falei:
─
Pera aí, ainda continuo sem inspiração!
Ele
parou abruptamente, virou-se e falou:
─
Pelo amor de Deus, Zé! Presta atenção e deixa de ser chato! Acende
a luz, faz um café, abre o computador e escreve!
Em
seguida ele saiu pela porta da frente e logo eu escutei o barulho das
asas cortando o ar frio da madrugada:
─ Flap, flap, flap...
Grande Zé Nario!
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