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quinta-feira, 2 de novembro de 2023

DESAFIO DAS CRÔNICAS

 

VISITA DO ANJO DA GUARDA

Acadêmico José Nário

    
    Acordei no meio da noite. Alguém sussurrava em meu ouvido. Era uma voz suave, mas de tonalidade masculina. Imediatamente eu concluí que não poderia ser minha esposa, até porque ela ressonava tranquilamente no travesseiro ao lado.
    Pisquei várias vezes na escuridão do quarto para ter certeza de que estava acordado. E rapidamente concluí que estava bem desperto. Olhei em volta, mas nada via devido à escuridão. Escutei apenas um farfalhar de asas, como se um grande pássaro estivesse ali no quarto, escondido na escuridão.
   Dúvidas permeavam meus pensamentos quando a voz falou novamente, bem próxima de mim. Chegou bem perto e disse:
    ─ Não fala nada, Zé. Venha até a sala que eu explico porque estou aqui.
    Fosse o que fosse aquela voz, seu portador sabia o meu nome. Não sei se fiquei mais apavorado ou mais tranquilo. Ainda tinha esperança de que fosse só mais um sonho dos muitos que povoam minhas noites. Em seguida ouvi novamente o farfalhar de asas e senti um arrepio percorrer meu corpo.
    Mesmo sem ter certeza se era ou não um sonho, resolvi levantar cuidadosamente para não acordar minha esposa e fazer o que mandava a voz misteriosa. Ouvi claramente quando a porta do quarto se abriu e uma tênue luminosidade inundou o quarto. Mesmo assim, não consegui discernir o que era aquele vulto.
    Saí da cama e passei pela porta, puxando-a atrás de mim. Fui em direção à sala, onde havia uma certa luminosidade vinda da rua, atravessando a grande vidraça da frente da casa. Um vulto escuro estava parado bem no meio da sala. Quando me aproximei, ainda temeroso, a voz falou novamente:
   ─ Oi, Zé. Desculpe te acordar no meio da noite, mas meu tempo anda meio escasso e só pude vir agora.
    Eu continuava sem entender nada daquilo. Aquele vulto, visto na penumbra, parecia um grande pássaro. Mesmo na pouca luz eu consegui ver que era, na verdade, um homem com asas. Grandes asas, que se moviam de vez em quando, como fazem os pássaros quando estão pousados.
    Ainda muito assustado e sob o efeito do sono interrompido, consegui articular a pergunta que chacoalhava em meu cérebro desde que fui acordado:
    ─ Quem é você e o que está fazendo aqui?
    Ele balançou a cabeça, concordando e disse:
    ─ Ah, claro, desculpe! Preciso me apresentar. Meu nome é Asariel e sou seu anjo da guarda...
    Se alguém pudesse me ver naquele momento, veria que eu estava com a boca aberta e tentando articular algumas palavras que não saíam. Depois de forçar um pouco, elas saíram meio gaguejadas:
    ─ O quê... quê... que ocê disse?
    ─ Eu disse que sou seu anjo da guarda e me chamo Asariel...
    É claro que a primeira coisa que me veio à mente foi que havia chegado a hora da minha partida para o além e o anjo viera me buscar. Mesmo torcendo para que não fosse a minha hora, achei bom que fosse um anjo a me buscar. Isso me dava uma pequena esperança de ir para o céu.
    Meus pensamentos foram interrompidos por uma gargalhada do anjo. Ele até se dobrou de tanto rir. Quando parou, olhou novamente pra mim e falou:
    ─ Vou explicar tudo. Não precisa ficar assustado assim! Não estou para te buscar, ainda... É que nos últimos dias você andou fazendo apelos a vários santos para lhe ajudarem. Parece que você está meio enrolado com uma crônica que prometeu aos seus companheiro da Academia e não encontra a inspiração para escrever, não é isso?
    Já um pouco mais tranquilo, respondi:
    ─ É isso mesmo. Na última reunião da Academia, nossa presidente, Dona Maria Ignês, fez uma proposta que todos nós aceitamos. Para nos incentivar a escrever, ela propôs que a cada reunião alguém apresentasse uma pequena obra escrita, lendo-a para os demais. E nessa primeira reunião ela mesma apresentou uma linda e inspirada crônica que falava do seu rico passado, da sua juventude, seus laços familiares e das belas lembranças advindas desses fatos. Eu me entusiasmei e prometi que seria o próximo a apresentar um escrito. Mas, com o passar dos dias e a proximidade da nova reunião dos membros da academia, eu percebi que a inspiração não vinha.
    Nessa hora, o anjo tossiu e retomou a palavra, bastante irritado:
    ─ Aí você desandou a pedir para os Santos ajudarem. Começou por São José, que tem o mesmo nome que o seu. Depois apelou para São Cristóvão, que já o ajudou muito em alguns acidentes de automóveis. Falou também com Nossa Senhora Aparecida, só porque quando criança você visitou seu santuário. Achou que já tinha alguma intimidade, né? Enfim, pediu para todos os santos conhecidos e terminou com Santo Expedito, o santo das causas impossíveis, não foi isso mesmo?
    Eu fiquei meio constrangido, mas admiti:
    ─ É, fazer o quê. Eu prometi...
    O anjo, mais calmo, continuou:
    ─ Pois é. Essa história de pedir ajuda pra tudo quanto é santo, só deixa claro uma coisa: você não tem é fé em nenhum deles. Não confia em ninguém lá de cima. Se tivesse, não pediria para todos. Mas, mesmo assim, eles resolveram te dar uma chancezinha. São Machado resolveu te ajudar e me mandou aqui.
    Eu fiquei meio surpreso com o nome do santo e perguntei:
    ─ São Machado, quem é esse? Nunca ouvi falar...
    O anjo levantou a cabeça, olhando pra cima e resmungou:
    ─ Deus Meu, quanta ignorância! Como não sabe quem é São Machado? Machado de Assis! São Joaquim Maria Machado de Assis. Era chamado de bruxo do Cosme Velho, mas isso era intriga da oposição. Fundou a Academia Brasileira de Letras e é considerado um dos maiores escritores em língua portuguesa... Um Santo homem, sem dúvidas!
    Eu o interrompi, antes que se entusiasmasse. Falei bem alto:
    ─ Eu sei muito bem quem é Machado de Assis!
    Ele fez um gesto com os braços, como se fosse um regente de orquestra, enquanto dizia:
    ─ Então, taí! São Machado mandou e eu vim te ajudar. Agora é hora de ir embora porque ainda vou trabalhar o restante da noite. Como já disse, ando meio sem tempo de ficar “proseando” por aí. Tchau!
    Ele se voltou e seguiu em direção à porta da frente. E eu fiquei ali pensando que continuava sem entender qual a ajuda que ele havia me dado. Corri atrás dele e falei:
    ─ Pera aí, ainda continuo sem inspiração!
    Ele parou abruptamente, virou-se e falou:
    ─ Pelo amor de Deus, Zé! Presta atenção e deixa de ser chato! Acende a luz, faz um café, abre o computador e escreve!
    Em seguida ele saiu pela porta da frente e logo eu escutei o barulho das asas cortando o ar frio da madrugada:
    ─ Flap, flap, flap...

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